Com um vestido escuro sobre a sua pele clara passa em passos de lã por entre uma multidão de corpos quentes e moribundos que bailam livremente ao sabor de uma melódica música numa sala pequena e perdida nestes confins que lhe chamo fim do mundo.
Eu deixo-me ficar de frente para o barulho, de calças de ganga azul escura, uma simples t-shirt e casaca de pele preta. Ainda trago comigo o frio de inverno, da neve intensa de lá de fora. Sinto o gelo da neve acumulada em meu cabelo derreter e escorrer por minha cara abaixo, tocam-me nos olhos. Respiro fundo. Uma abafada corrente de ar quente e húmido esbate-me no corpo vindo da multidão. Sinto o cheiro dos corpos e do aroma dos demais por entre um tímido mas resistente cheiro a madeira velha que preenche a casa.
Dois jovens de olhos pretos e mãos entrelaçadas passam à minha frente, respiram numa intimidade apaixonada, trazem o coração no olhar que lançam sobre o outro. Já não me lembra a última vez que me apaixonei com toda a força, só me lembra o presente e os devaneios sem futuro. Sinto a falta de amar, faz-me frio, faz-me ficar aqui de olhos baixos, sentindo lá longe o movimento das restantes vidas. Triste estas nossas vidas que não recebemos um abraço nestas noites de Inverno...
Gosto de traços pretos, bem definidos, por debaixo de um olhar a arranhar os demais. Gosto do olhar dos apaixonados, de todo o seu brilho, parece que têm o mar nos olhos. Gosto particularmente do toque da luz da lua no olhar. Gosto dos olhos da pequena e bela rapariga que lá longe se faz mulher perante aquela gente. São deveras os meus favoritos porque têm o encanto da menina que foi e da mulher que se tornou. Gosto da expressão que o seu olhar tem quando se deixa levar pelo som da música.
Pessoas continuam a entrar, trazem no olhar o desejo e têm os corpos vestidos de sensualidade. Corpos semi-nus prontos para se libertarem da vida real e entregarem-se à noite e à dança com dedicação e transpiração.
Uma multidão me assalta assim que o espaço começa a faltar, deixo-me levar pelo movimento dos corpos. Tocam-me vezes de mais. Sou arrastado contra a parede, bato violentamente com as costas no branco sujo. Fecho os olhos em dor, um tremor me conquista, o peito aperta e me sufoca, a respiração quase não sai, quase caio sobre o velho soalho. Abro e levo os olhos esganados ao tecto, fixo o olhar sobre um grande e portentoso lustre de cristal que ficou esquecido pelo tempo. A casa transpira história mas hoje não há história que se respeite, hoje esta casa é violentada e marginalizada. Hoje esta casa não passa de mero abrigo para jovens inconsequentes. Espero que resista. Ergo-me perante os demais e finjo ser forte. Pouso a casaca sobre um móvel encostado à parede e faço-me rebelde enquanto avanço para o centro da sala. Finto as pessoas sem medo e com coragem. O chão estremece à medida que toco na madeira velha. Liberto-me em movimentos que não controlo mas flutuo ao som da música. Mal conheço este meu lado rebelde mas hoje o mundo se cala em meu redor e apenas eu existo. É fácil.
O cabelo longo e liso solta-se num movimento e cai sobre os seus ombros despidos. De braços elevados ao ar bailando-os numa dança suave aponta discretamente os olhos para mim. Não desvio o olhar dos seus olhos, ela não recusa o toque de olhares, e sem receio, avanço em sua direcção. Toco-lhe na respiração, levo-lhe as mãos à sua barriga, encosto-me a ela e quase tocamos os rostos. Elevo-a por entre a multidão, rasgamos a sala em movimento, cruzamos os corpos, entrelaçamos os braços, finta-mo-nos vezes sem conta ao som da música que nos bate aos ouvidos. Sobre a alma se abate a euforia e na tentação dos corpos não há lucidez que resista, quase se descontrolam as emoções, quase deixo de ser rebelde. O seu perfume chega a mim aquando baixo a face ao seu pescoço, percorre-me o corpo num ápice. Quase levo os meus lábios à sua pele mas resisto à tentação e deixo somente a respiração libertar-se perto dela.
Não há como fingir o desejo e na dança dos nossos corpos resistir ao seu encanto torna-se impossível, a cada passada vejo-me à procura de um sorriso em seus lábios carnudos mas o sorriso está fechado e tímido. Deixo-me ficar pelo olhar que coloca em mim e me acompanha a todo o tempo. Porém, com o passar do tempo um mundo de gente desconhecida abafa-nos no meio da sala e limita-nos os movimentos. A sua expressão facial muda e incomodada avança por entre os gigantes e quase desaparece nas sombras. Faço um esforço em segui-la mas o meu corpo não se desloca com a mesma facilidade. Lá longe vejo-a subir a toda a velocidade umas escadas que dão para o piso de cima.
Dou com ela ao fim de alguns minutos num quarto de luz apagada, sentada ao pé da cama, virada para a janela. Entro em passos suaves, fecho a porta devagar e sento-me a seu lado. Numa intimidade desconhecida ficamos ali sentados no escuro e em silêncio a olhar a neve cair pela janela enquanto o chão apenas estremecia ao ritmo da música lá de baixo. Dispo-me de rebeldia e aqueço-a num abraço enquanto ela pousa a cabeça em meu peito. Ao fim de alguns segundos deixa-se cair sobre as minhas pernas e coloca os olhos no tecto de madeira. Quase mal falamos, apenas frases soltas eram proferidas mas só os olhos diziam algo que queria mesmo ouvir. Era o brilho no seu olhar que me cativava segundo após segundo. Ficamos ali os dois deitados, corpos juntos, ela virada para cima e eu para baixo com o rosto pousado sobre um dos braços. Apaixonei-me de verdade e a meio de uma frase que já mal conseguia ouvir por tão cego estar lhe roubo um beijo que ela agarrou com toda a força como se fosse tudo o que desejasse e esse beijo perdurou por toda a noite em nossos lábios. Não descolei os meus lábios dos seus e os nossos olhos não mais se abriram, em seu corpo pousei o meu e a roupa rasgada ficou esquecida a um canto. Batia forte o seu coração em explosões sucessivas até ao momento em que do cansaço adormeceu para logo de seguida eu a acompanhar.
Não importa se os ouvidos doiem ou o corpo se recente. A brutalidade do momento é vivida até à exaustão sem controlo nem limites. Assim, os corpos se unem vezes sem conta numa dança pura e limpa e para lá de tudo que se possa pensar ou dizer, não há palavras que nos possam julgar, porque a vontade que cá dentro vive é o que comanda a vida, sem pesar nem receios, e tudo o que fica ao acordar é apenas um zumbido constante nos ouvidos feridos porque as almas essas saem rejuvenescidas e os corações esses saem imaculados. No entanto, é tudo tão fútil que acabamos sempre vazios, perdidos no nosso próprio terror, numa solidão que nos conquista sem pesar e tudo perde encanto ao amanhecer quando dos olhos se abrem à luz do sol e se mostram as verdadeiras caras sem sombras nem maquilhagem e assim as histórias se perdem por entre os dedos e não permanecem para eternidade, não há história que fique para a eternidade, talvez esta casa velha fique para sempre na memória mas o resto esvoaça-se tão rápido como o vento que passa por mim.
Porém, ela ficou a meu lado, agarrada à minha mão mesmo depois do acordar. Ficou ali longos segundos a segurar-me e eu senti o seu coração bater uma vez mais intensamente. Não tive vontade de ir embora como outras vezes o fiz porque hoje acordei com um sorriso nos lábios e um abraço que aquece cá dentro. O vento que veio de um vidro partido na janela limpou-lhe a cara e abriu-lhe os olhos. Eram os mesmos da noite anterior para minha surpresa, tinham uma doçura que já me esquecia. Deixo um sorriso ao seu acordar e deixo-me ficar, tudo o resto pode esperar, porque tudo o que quero agora é viva-la sem egoísmos. Não lhe espero a eternidade, espero somente estes segundos do seu tempo e da sua companhia, e, com isso sei que serei feliz para toda a eternidade porque comigo levarei sempre algo que nunca mais conseguirei esquecer.
3 comentários:
FINALMENTE!!!
Lá veio a inspiração!!! E que inspiração, deixa-me que te diga!
Sem palavras...
Temos aqui tema para um book?!
Acho, e espero muito sinceramente que sim!!!
Parabéns ;)
Realmente faz tempo que não escrevia algo assim mas a culpa foi da falta de tempo. Na verdade à sempre tempo para escrever mas por vezes o cansaço é tal que tudo o que escrevemos parece-me sempre tudo tão forçado que não consigo editar. Não escrever deixou-me uma saudade cá dentro.
Felizmente esta semana tive um certo tempo disponível e também tive a sorte de ter a inspiração e lá consegui criar esta história.
Fico mesmo feliz por saber que gostaste. :):):):)
Obrigado.
Quanto ao livro, não sei, adorava por isso talvez um dia mais tarde;)
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